domingo, 15 de agosto de 2010

BILOCAÇÃO

BILOCAÇÃO
(Clerisvaldo B. Chagas, 16 de agosto de 2010)
(Para meus compadres professores Alberto Pereira e Salete Bulhões assíduos e importantíssimos leitores das nossas crônicas diárias).
Victor Mature estava no papel de escravo. Olhava com espanto para ti, Senhor, no filme “O Manto Sagrado”. Mas por que me levaste até o Gólgota? Estou mais perto de ti de que o ator de cinema. Estremece as minhas carnes, vibra o meu espírito. Irmano-me a tua dor. Atravesso a dor. Sinto a sua dor... Mas não é, Pai, a dor que traz a dor. São formas de translúcidos cristais que fulminam as minhas veias mutantes de crisálidas. O sangue listrado do teu corpo é o encarnado escarnecido do teu manto. Por que meus passos não são passos, não passam dessa cruz? Vigorosa, martirizante... sacra. Minha íris débil reluta a tua íris santa. Cai em mim, silêncio morto, cheio de vida do reluzir grande. Um soldado inerte, um rei no trono que a madeira ampara. Mas eu vejo na transparência fluida o que não via. Por que me elevas, Senhor, ao nível do teu sofrido e sereno rosto? Sim, vejo sim, pontos de luzes brancas em ordem de esfera. Cabelos com respingos escarlates nos fios naturais. Terríveis espinhos do horror humano. Estou vendo, Senhor: o céu é plúmbeo, à hora é nona. Faíscas de ouro escapam dos picantes ecúleos. Dardejam mistérios divinos nesse temerário céu. Longas manchas negras de caudas leitosas cortam o etéreo por trás de ti. Estendo meus dedos que se alongam em busca das tuas chagas. Um poderoso imã impede a proximidade profana. E sinto meus dedos suavemente girando em torno das tuas feridas. As mãos, as mãos, Senhor, por vontade espontânea erguem o interior das palmas e recebem fragmentos de ferro que ardem como fogo. Novamente olho nos teus meigos olhos. E o sangue dos teus ferimentos forma jorros finos que sobem, curvam-se, caem nos espalmados das minhas mãos. Vão-se os fragmentos de limalhas. As dores baixam, aliviam, desaparecem.
Vejo tua boca, Senhor, ouço o teu brado. Vou além sem saber como, na velocidade/luz. O véu do templo rasga em minha frente e meu ser estremece como em busca do teu espírito. Volto lentamente ao Gólgota e já não encontro o teu calvário. Tua cabeça pendida me expulsa lágrimas como o jorro do teu sangue. Da baixada, sobe um ornejar. À altura do teu corpo, a mesma força me conduz a te examinar sem toque da cabeça aos pés. Como o colibri que esvoaça em torno da flor, vou circulando sucessivamente em tua volta. Não pode ser irreal esse coro que ouço e não conheço. Porque ele toma o que sou e me permite a retirada. Não vejo centurião, não enxergo centúria, ignoro apóstolos. Somente o céu, a música e ti. E a mesma força que me conduziu a Judeia, vai me afastando como cheguei ao monte.
Sem saber se isto é uma crônica, um sonho, um conto... Olho as minhas mãos, descubro vestígios vermelhos dos tiranos pregos. E um perfume profundo que supera as rosas, emana fortemente das marcas encontradas. Choro copiosamente. Vacilante, espio a sua imagem hirta na parede do quarto. E fico entendendo sem compreender essa BILOCAÇÃO.


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